Artigo comentado: o impacto da microbiota intestinal, avaliada por sequenciamento metagenômico shotgun, de uma prova ultra prolongada na composição da microbiota intestinal de um corredor obeso.
Por Francine Alves Sinnott
Bióloga, Doutora em Parasitologia pela UFPEL e Especialista de Produto na BiomeHub
Neste postblog será abordado:
Exercício físico e obesidade
O exercício físico tem sido investigado como uma intervenção não farmacológica para a modulação dos elevados níveis de inflamação associados à obesidade, auxílio na perda de peso, aumento da sensibilidade à insulina, ocasionando adaptações favoráveis com maior probabilidade de mitigar ou reverter o curso da obesidade e comorbidades associadas, mesmo sem intervenção dietética.
De acordo com a literatura, existe uma associação íntima entre a microbiota intestinal e o estilo de vida ativo, demonstrando que a promoção do exercício também pode ajudar a restaurar o equilíbrio da microbiota intestinal de pacientes com obesidade.
Pesquisas indicam que o exercício físico extenuante pode agravar a perda da homeostase (equilíbrio) intestinal. Em contrapartida, quando o exercício é realizado com menor intensidade em indivíduos obesos, observa-se a ocorrência de alterações positivas na composição da microbiota intestinal.
Em um trabalho publicado em 2021, um grupo de pesquisadores Irlandeses relatam que exercícios de resistência, incluindo maratona e triatlo, podem contribuir para aumentar a α-diversidade de atletas obesos, contudo, não há descrição dos efeitos agudos de uma ultramaratona sobre a microbiota intestinal deste público.
O impacto na microbiota intestinal de um ultramaratonista com obesidade
Os efeitos desse tipo de exercício são benéficos para a microbiota de indivíduos com obesidade? Ou o estresse gerado pelo exercício extenuante poderia prejudicar a saúde intestinal?
Para responder esta dúvida, conversamos com o nutricionista e mestre Giulio Kai Saragiotto*, que conduziu uma pesquisa sob orientação da Profa. Dra. Adriane Antunes de Moraes, da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, em colaboração com a BiomeHub.
O objetivo desta pesquisa foi compreender o impacto da microbiota intestinal, avaliada por sequenciamento metagenômico shotgun, de uma prova ultra prolongada na composição da microbiota intestinal de um corredor obeso.
Durante uma corrida de ultramaratona, o atleta é submetido a condições extremas, o que resulta em perturbações no organismo, alta demanda energética e restrição do sono. Esses fatores podem também influenciar a composição da microbiota intestinal.
“Estudos mostram que atletas de ultramaratona podem experimentar diversas consequências para a saúde durante a competição, incluindo o desenvolvimento de sintomas gastrointestinais, lesões musculares e articulares, danos renais e, possivelmente, alterações na microbiota intestinal", complementa Giulio.
Entendendo o estudo
Atualmente, poucos estudos investigaram a composição da microbiota intestinal de ultramaratonistas. No entanto, até o momento, nenhum estudo abordou a composição da microbiota intestinal de um corredor com obesidade, após uma ultramaratona.
"Neste estudo, demonstramos que o excesso de atividade física pode ser prejudicial à saúde de indivíduos obesos. Acreditamos que a ultramaratona representa um dos tipos de exercício físico mais exigentes, o que pode contribuir para desmistificar a ideia de que 'quanto mais exercício físico para um indivíduo com obesidade, melhor'", explica Giulio.
"Uma abordagem interessante adotada neste estudo foi a categorização das espécies bacterianas em dois grupos distintos: 'unfriendly' e 'friendly'. Essa classificação foi implementada para facilitar a compreensão dos leitores e possibilitar uma interpretação mais clara dos resultados. As bactérias "friendly" referem-se a bactérias benéficas que ajudam o hospedeiro, enquanto "unfriendly" engloba bactérias que podem causar problemas para a saúde humana", explicam os pesquisadores.
Resultados da pesquisa
A Brazil 135 Ultramaraton (BR135) é uma competição internacional, com 217 km que ocorre na Serra da Mantiqueira, localizada entre os estados de São Paulo e Minas Gerais. Trata-se de uma ultramaratona de montanha com uma única etapa. Após a corrida de 217 km, os autores observaram um aumento na proporção de bactérias "unfriendly" e uma diminuição nas bactérias "friendly", indicando uma perda da homeostase na microbiota intestinal do atleta.
"Essa alteração na proporção de bactérias intestinais pode representar riscos para a saúde do corredor.
Houve um aumento expressivo de Escherichia coli e Klebsiella pneumoniae, duas bactérias potencialmente patogênicas e que não foram identificadas no intestino do corredor antes da corrida (ilustrado pelo T0 na pesquisa).
A E. coli está associada a um elevado número de casos de gastroenterite, enquanto a K. pneumoniae está ligada ao desenvolvimento de pneumonias. Ambas estão associadas ao desenvolvimento de doenças inflamatórias intestinais e até ao câncer de cólon. No mais, podem sintetizar metabólitos tóxicos para o organismo humano", explica Giulio.
Na pesquisa, os autores observam que houve também uma redução na quantidade de bactérias 'friendly', incluindo bactérias do gênero Bifidobacterium (B. adolescentis, B. bifidum, B. longum). Algumas cepas deste grupo bacteriano são capazes de sintetizar ácidos graxos de cadeia curta, que podem contribuir para a melhoria da permeabilidade intestinal, o fortalecimento do sistema imunológico e o controle da inflamação. "Além disso, esses metabólitos podem interagir com o metabolismo glicídico e lipídico nos músculos", acrescenta Giulio.
Segundo a Professora Adriane, esse tipo de estudo representa um desafio para a equipe envolvida, devido às características da prova de ultramaratona. Ainda que não seja comum se observar praticantes desta modalidade esportiva com sobrepeso ou obesidade, os resultados obtidos podem ser extrapolados para outras condições físicas que sejam extenuantes.
Em conversa com os pesquisadores, pode-se observar que os resultados desta pesquisa sugerem que a prova de ultramaratona teve impactos negativos agudos na saúde intestinal do corredor. A alteração na composição da microbiota intestinal, com o aumento de bactérias patogênicas e a redução de bactérias “benéficas”, pode resultar em complicações adicionais dependendo do contexto específico do indivíduo, como o estado de saúde pré-existente.
Tais impactos podem, portanto, representar riscos elevados para a saúde intestinal e geral do atleta, sublinhando a necessidade de estratégias adequadas para minimizar esses efeitos sobre a microbiota intestinal.
"Em breve, com o avanço da ciência nessa área, é possível que possamos utilizar técnicas dietéticas para modular de maneira benéfica a composição da microbiota intestinal de indivíduos obesos. Essas estratégias poderão promover o aumento de bactérias com funções positivas para a saúde, como aquelas que favorecem a digestão, a imunidade e a manutenção da homeostase intestinal. A implementação dessas intervenções dietéticas poderá representar um avanço significativo na promoção da saúde intestinal e no manejo da obesidade", concluíram os pesquisadores.
Para ler o artigo na íntegra, clique aqui.
*Giulio Kai Saragiotto, é nutricionista, e desenvolveu esta pesquisa durante seu doutorado pelo Programa de Ciências da Nutrição, do Esporte e Metabolismo (CNEM) da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da UNICAMP, sob a orientação da nutricionista Adriane Antunes de Moraes, Doutora em Alimentação e Nutrição pela UNICAMP, Pós-Doutora no Instituto de Tecnologia de Alimentos ITAL, professora Livre-Docente do programa de Nutrição e de pós-graduação do CNEM da FCA-UNICAMP.
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