Alergias e intolerâncias alimentares são consideradas hoje um problema de saúde global que afeta inclusive crianças.
Em estudo publicado no Journal of Allergy and Clinical Immunology, pesquisadores da Icahn School of Medicine, de Nova York, mencionam que a prevalência de alergias alimentares atinge até 10% da população, e que provavelmente tenha aumentado nas últimas décadas. Até que ponto o microbioma intestinal influencia essa condição? É o que vamos discutir neste post!
A origem das alergias alimentares envolve o desvio de um estado padrão de tolerância imunológica a agentes externos ao corpo (alimentos), provavelmente impulsionado pela exposição ao antígeno, pela microbiota do indivíduo ou pelas interações entre ambos. Sabemos que o número de células das comunidades microbianas existentes no corpo humano supera o número de células próprias, o que desperta um primeiro interesse em como um desequilíbrio desses microrganismos (disbiose), pode influenciar ações do sistema imunológico e, em consequência, o desenvolvimento da sensibilidade a componentes alimentares.
Antes de prosseguirmos, vamos entender a diferença entre “alergia” e “intolerância” alimentar:
A alergia alimentar é definida como um efeito adverso na saúde decorrente de uma resposta imunológica específica que ocorre na exposição a um determinado alimento. A alergia alimentar geralmente envolve a produção de anticorpos IgE específicos que é uma classe de anticorpos normalmente encontrada em maiores concentrações durante reações alérgicas (no entanto, existem alergias não mediadas por IgE). As alergias costumam causar reação dentro de poucos minutos até duas horas de exposição ao alérgeno. Essas reações podem ser sistêmicas, envolvendo as áreas cutânea, respiratória, trato gastrointestinal e sistema cardiovascular, podendo chegar até à anafilaxia (reação de hipersensibilidade aguda, potencialmente fatal). Os sintomas relacionados às alergias alimentares são variados, sendo os mais comuns: desconforto e dilatação abdominal, diarreia, náusea, letargia e em alguns casos, febre e vômito, entre outros. Portanto, sintomas pouco específicos, e facilmente confundidos com outras patologias.
Na alergia alimentar mista (mediadas ou não por IgE), células T específicas de alimentos são dominantes e afetam o trato gastrointestinal. Ela ocorre especialmente em crianças. Os distúrbios da alergia alimentar mista incluem principalmente dermatite atópica (eczema) e distúrbios gastrointestinais e eosinofílicos (superprodução de um tipo específico de células de defesa - os eosinófilos - em diferentes porções do trato gastrointestinal).
A intolerância alimentar é uma reação que não envolve mecanismos imunológicos e é mediada por metabólitos, toxinas, fármacos ou mecanismos indefinidos. A intolerância alimentar é caracterizada pela dificuldade do corpo em absorver algum nutriente, geralmente devido à falta de alguma enzima, que são responsáveis pela digestão e processamento dos alimentos. Nas últimas décadas, foi relatado que a intolerância alimentar é mais prevalente do que as alergias alimentares. A condição pode resultar em sintomas que são relativamente semelhantes aos da alergia alimentar, mas aqui os sintomas podem ocorrer horas após a ingestão do alimento e podem durar dias.
Neste PostBlog, iremos abordar sobre a relação entre as alergias alimentares e o microbioma intestinal.
Microbiota intestinal e o sistema imunológico
A colonização microbiana precoce desempenha um papel importante no desenvolvimento tanto do sistema imune inato (células da nossa imunidade que protegem nosso corpo de uma forma não-específica) quanto do adaptativo (conjunto de células que agem de forma mais específica, possibilitando a memória imunológica, as quais desenvolvemos a medida que somos expostos a novos antígenos).
A tolerância aos antígenos alimentares depende de células do sistema imune inato (como as CD103 + células dendríticas da mucosa), que promovem a diferenciação de células T reguladoras (Treg), que como o nome já indica, auxiliam na regulação da resposta imune do hospedeiro.
IWEALA e NAGLER (2019) propõe que uma barreira protetora induzida pela microbiota é necessária para reduzir o acesso do alérgeno à circulação sistêmica e prevenir respostas alérgicas a alimentos.
A microbiota comensal também influencia o desenvolvimento de Treg diretamente por meio da fermentação microbiana a partir de fibras alimentares, produzindo produtos como o butirato, um ácido graxo de cadeia curta. O butirato estimula a diferenciação de Treg sob uma série de condições, que foram associadas à acetilação de histonas.
Tais descobertas sugerem que uma classe de bactérias comensais pode promover o desenvolvimento de Tregs por meio da regulação epigenética (capacidade que o organismo tem de “ativar” ou “desativar” genes), além de desempenhar um papel significativo no desenvolvimento e manutenção da função de barreira do intestino, e acredita-se que a quebra desta barreira epitelial, devido a uma disbiose, possa favorecer à sensibilização alérgica. Com a barreira comprometida, além da composição da microbiota poder ser alterada, devido a passagem de substâncias por entre (ou por dentro) das células e isso causar uma inflamação crônica de baixo grau, componentes dietéticos também poderiam ser carreados para além do intestino, tendo acesso ao espaço submucoso intestinal, podendo interagir com o sistema imune e causar uma sensibilização.
Modelos experimentais de camundongos livres de germes (gnotobióticos) demonstraram que os tecidos linfóides associados ao intestino (GALT - tecido imunitário do trato gastrointestinal) não se desenvolvem quando a colonização microbiana é retardada, levando a uma resposta imune distorcida.
O papel funcional da disbiose associada com a alergia alimentar foi revelado por diferentes capacidades da microbiota intestinal de camundongos, sensibilizados com alérgenos. Nesses modelos com disbiose, observou-se o aumento do número de células do tipo Th2 e de respostas de IgE, causando maior sensibilização alérgica. Em contrapartida, constituintes da dieta, como ácidos graxos poliinsaturados, vitamina D, selênio e polifenóis foram todos associados com redução da resposta Th2 em modelos murinos.
Outro fator que pode ser relacionado ao surgimento das alergias alimentares é o uso de antibióticos em crianças até os dois anos de idade. A administração de antibióticos durante a infância foi associada ao aparecimento de vários tipos de alergias alimentares, incluindo alergia ao leite. Além disso, a classe de antibióticos também determinou o risco de desenvolver alergia alimentar, sugerindo que o esgotamento de bactérias específicas pode influenciar a suscetibilidade à alergia.
Os antibióticos modificam a composição do microbioma intestinal, podendo levar a mudanças funcionais que promovem o desenvolvimento de doenças alérgicas.
Uma possível relação entre o uso de antibióticos e as doenças alérgicas é por meio da interrupção das bactérias intestinais que regulam negativamente o nível de produção de IgE.
No nosso próximo PostBlog, vamos explicar a relação entre as alergias alimentares, o tipo de parto e a dieta da criança, e como tudo isso se relaciona com o microbioma intestinal!
Compartilhe nosso conteúdo e até o próximo post!
Fontes:
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